A crônica a seguir é uma proposta que bolei: decidi escrever a partir de uma idéia incial, apenas isto. Sem planejar nenhuma história, nenhum roteiro, nada. Apenas sair escrevendo de improviso.
Reparei que conforme escrevia, inevitavelmente alguns passos à frente iam surgindo na minha mente. Mas num geral, quase tudo foi de improviso. Pretendo fazer disto uma série, talvez. Veremos…
Então lá estava eu, dentro de um armário minúsculo, entre arquivos de transações comerciais e plantas de prédios da empresa. Não era nem um pouco confortável, e para não fazer um barulho sequer, era preciso permanecer com a coluna torta e ficar pendurado pelos dedos que se apoiavam nas dobras do metal. Doía absurdamente, e estava louco para que os mafiosos do lado de fora do armário não percebessem minha presença lá dentro. Patético, pensei comigo mesmo.
A razão da minha humilhação, e o começo desta história toda: Eu era um espião. Estava trabalhando infiltrado há meses naquela organização, e mesmo antes disso, havia tido muito trabalho para ter acesso a este lugar, o escritório do Chefe.
E, este dia era o dia perfeito para meu golpe. Feriadão, toda a bandidagem reunida no terceiro andar e assistindo ao jogo de futebol onde o palmeiras massacrava a ponte-preta num jogo disputado. Era minha chance perfeita de entrar no escritório do Chefe e furtar os tão cobiçados documentos, a meta final do meu trabalho que provaria os crimes da organização. Depois desta, eu estaria livre e talvez até ganhasse uma medalha de honra.
E como eu poderia prever isto? Justo no segundo tempo, enquanto eu me satisfazia na mesa do Chefe, os bandidos decidiram que queriam pipoca! Pipoca! A organização tinha dezenas de escritórios na cidade, todos luxuosos. Por que então o microondas tinha que ficar justo na sala do Chefe? Por que razão o Chefe não podia ter uma cozinha? E pior que isso, que tipo de bandido respeitado desperdiça feriados comendo pipoca?
Então, enquanto os milhos estouravam, eu estava lá espremido dentro de um armáriozinho, praguejando em silêncio e a úlcera retorcendo minhas tripas.
– Vou te falar, esses gols foram muito fáceis! – Dizia um capanga. O outro respondeu:
– Ah, depois dos dois primeiros, a Ponte se entregou.
Paft! Caí com tudo no chão. A bandidagem me olhava perplexa! Por um segundo, fiquei imóvel no chão, tentando com todo empenho pensar no plano de fuga que não consegui bolar o tempo todo dentro do armário. Então concluí que eu teria de improvisar mesmo: levantei-me com um sorriso amarelo, um riso sem graça, sacudindo o pó da roupa.
– Há-há, muito engraçado, vocês! Trancar o Novato no armário do Chefe sabendo que eu não queria perder o jogo! – Então comecei a me dirigir para a porta – Aposto que é coisa do Piolho! – dizia, dando tapinhas nos ombros dos companheiros. Eles me olhavam estupefatos, sem reagir e tentando processar a informação em seus pequenos cérebros de peixe. Às vezes eu os olhava, brutamontes atrapalhados e bobões, e me perguntava: como pessoas tão estúpidas praticamente governavam as ruas? E enquanto eles tentavam entender meu discurso, eu já estava a alguns passos da porta.
– Ô Piolho! Sacanagem, hein? – Gritei, saindo do escritório – Você sabia que eu não queria perder esse jogo! Vamos lá, vamos torcer, DÁ-LHE FLAMENGO!
Pronto. Bastou duas palavras para eu arruinar minha escapadela bem-sucedida: O jogo era do Ponte-preta vs Palmeiras! A palavra “Flamengo” pareceu tê-los atingido como uma companhia de dançarinos sapateando o flamengo em suas cabecinhas ocas, pois ambos encararam-se por um breve momento. Os dançarinos devem ter sapateado por mim também, pois logo após ter dito a palavra, estaquei.
– Ah, porcaria.
Corre! Disparei com tudo, corredor à frente, em direção às escadas. Os brutamontes correram atrás de mim, sacando suas armas. A caminho dos primeiros degraus, eu ainda não tinha plano nenhum. O que fazer? Descer as escadas, subir para o telhado? Pegar o elevador? Então pensei: todos estavam num andar abaixo. Como fui descoberto, teria que fugir de todo jeito. Mas não precisaria fugir em desespero, se pudesse neutralizar estes dois e sair pela porta da frente, sem ninguém perceber.
Então parei, a um passo das escadas. Virei-me, e, gritando loucamente, corri na direção dos dois.
“Ahhh”, esbravejei, e isto os fez hesitar, assustados. Na corrida, joguei-me contra a parede, e num impulso, atirei-me contra o bandido mais próximo. O outro gritou: – Pegue-o! – Mas era tarde demais para seu amigo: eu já o havia acertado no estômago. O susto fez o primeiro bandido disparar sua arma, a bala enterrando-se com estardalhaço na porta metálica do elevador. Lá se foi minha chance de sair de mansinho. Aproveitando o impulso, chutei a arma de sua mão, resultando em outro disparo. O vilão se recompôs e fechou as mãos em meu pescoço, mas agi rápido apoiando os joelhos em seu peito e empurrando-o para trás. Tão logo caí de costas, ambos os bandidos já estavam em cima de mim. Tratei de correr para as escadas novamente. Queria descer os degraus, mas vi as sombras de pessoas armadas subindo por elas, então subi com todo o prédio cheio de mafiosos no meu encalço. Não havia como despistá-los – a escada levava aos corredores superiores, e os meus perseguidores estavam perto demais para eu fugir sem ser visto.
Então continuei até irromper com grande ímpeto pela porta corta-fogo do último andar. Saí no telhado do prédio, ao ar livre e com o sol ofuscando meus olhos.
Poucos segundos depois, a porta abriu-se em nova explosão, com duas dezenas de captores tropeçando prédio afora.
Enquanto a bandidagem se esgueirava, atrapalhada, pela porta, pude me afastar um pouco mais, contornando a casa de máquinas do elevador e saindo de vista.
Os bandidos finalmente, com algumas gentilezas, transporam a porta do teto. Espalharam-se pelo piso, sacando suas armas e apontando-as ao chão. Pareciam agentes federais, talvez até policiais como eu, assumindo uma formação ao passar um pente-fino no local. A diferença é que todos vestiam jaquetas de couro, braceletes, botas rebitadas e barbas mal-feitas.
Percorreram o teto vagarosamente, olhando atrás das saídas de ventilação, casa de máquinas, canos, embaixo do heliporto… e logo começaram a olhar uns para os outros, indagando-se: onde estava o traidor? Percorreram todo o teto, e eu não estava em lugar algum. Então, para minha infelicidade, alguns constataram que, se eu não estava no teto, devia ter pulado ou algo assim. E foi justamente algo assim que eu havia feito: um dos bandidos, ao espiar pelas bordas do prédio, gritou:
– Ei, aqui! – E, em seguida, desatou a rir. O resto dos vigias correu para o mesmo lado, e logo todos estavam rindo para mim, indefeso e agarrado a um cano que descia a parede. Patético. Dependurado na parede do oitavo andar com toda a Máfia da cidade rindo da minha cara.
Enquanto eu tentava escalar o cano andar abaixo, um malfeitor tirou uma chave de boca da jaqueta – De onde mafiosos tiram chaves-de-boca? “Será que todo mafioso tem uma?”, pensei – e, sorrindo, abriu caminho até o cano. Seus companheiros gostaram da idéia, e começaram a gritar, assobiar, torcer: Vai, vai, vai, vai!
O malfeitor começou então a desparafusar as porcas do cano, para o meu desespero e expectativa dos demais.
Em um minuto, o cano estava solto, eu estava nauseado e a bandidagem sacudindo o único apoio que me impedia de ser precipitado rumo ao chão. Eu me agarrava ao cano como podia, lá embaixo, e eles, babando e rindo, chutavam-no e empurravam-no de um lado a outro. Fizeram-no tanto, que foi atingido o que desejavam. Vários metros abaixo de mim, a junção onde o cano se conectava a outro rachou. E foi nessa hora que amaldiçoei os doze quilos que ganhei comendo pizza nesse disfarce.
Nheeec, protestou o cano ante o peso do meu corpo fora de forma. A parte superior do cano cedeu, as dobradiças arrebentaram-se e eu choraminguei algumas palavras sem sentido.
– Vivas! – gritaram os mafiosos, e eu fui abaixo, abraçado ao cano.
O cano não havia se partido, portanto dobrou-se para fora na base. Eu já me sentia desconsolado, ciente de que meu peso o faria despencar prédio abaixo. E foi o que fez: despencou, despencou, eu me agarrando ao último suspiro de vida, despencando, e… BAM! Parei! Na horizontal. Mas como? Abri os olhos, avistando lá em cima uma cara de indignação que preenchia o rosto dos bandidos. Olhei para baixo e vi o chão, oito andares abaixo. O cano estava exatamente na horizontal, uma ponta ainda presa no prédio da máfia… e a outra, presa exatamente no prédio vizinho! Quem diria! Que alívio. Então, bang! Um tiro!
Olhei novamente para cima, e vi um dos bandidos mal-encarados com a arma apontada para mim. E os outros também retiravam as armas de seus coldres. Ah, não! Precisava fazer algo! Rapidamente, soltei uma das mãos e a pus no bolso. Vasculhei, e tirei a primeira coisa que meus dedos encontraram. Ergui o objeto. Era um canivete, daqueles minúsculos que perdem o corte ao partir um sushi. Gritei:
– Não atirem! Estou com o canivete premiado do avô do Chefe!
Ninguém se mexeu. Hesitaram em continuar o tiroteio. Então, ouvi um grito abafado e muito conhecido:
– Ei, eu não tenho canivete nenhum!
Pronto. Bang, bang, bang!
Em um minuto, eu estava sob uma chuva de balas!
O canivete já era, sumiu lá embaixo. Eu não perdi tempo; Comecei a me arrastar em direção ao outro prédio. Por sorte, não fui atingido. Mas o cano atrás e à minha frente, foi. Começou a balançar ainda mais, e envergar por conta dos buracos que destruíam-no. Arrastei-me até a ponta onde o cano estava precariamente apoiado, num pequeno relevo do prédio vizinho. Tão logo cheguei, o cano cedeu e foi abaixo. Eu observei a vertiginosa queda, não participando dela por estar dependurado no relevo do prédio.
Abaixo de mim, havia uma janela, portanto, com um impulso, atravessei-a, quebrando o vidro. Caí pesadamente no chão, aliviado por ver-me livre da máfia e daquele trabalho detestável de espião. Olhei janela afora, e vi no outro prédio as caras indignadas e punhos levantados dos meus perseguidores.
Virei-me, sorrindo. Estava livre! Poderia agora voltar para…
– Ah, porcaria.
Diante de mim, havia: um escritório de luxo, com uma grande mesa, seis cadeiras e seis pessoas reunindo-se, todos com submetralhadoras apontadas para mim. Lá na ponta, estava ninguém menos que Marcelo Ponto-de-bala, o principal traficante de armas da cidade.
– E quem é você? – Perguntou o Chefão.
E agora, o que dizer?
– Chefe… Chefe!! A máfia está fechando contrato de armas com outro fornecedor! – E então tirei do bolso os documentos que levei cinco anos sob disfarce para obter, e entreguei-os nas mãos do primeiro vilão com quem topei.
Marcelo Ponto-de-bala adiantou-se, folheou as páginas, resmungou. As outras armas permaneciam apontadas para mim.
– Hmmm… E quem seria você?
– Eu… Eu… Novato! Eu sou o Novato!
– Ah, claro… O Novato – repetiu ele, incerto. – Muito bom, novato, fez bem em conseguir estas provas! Diga-me…
– Ahn, Tiro-e-queda! Beto Tiro-e-queda!
– Ok, diga-me, Tiro-e-queda, como as conseguiu? – Continuou o chefe do tráfico de armas, enquanto virava-se no aposento e trancava os documentos em seu armário particular, o armário do Chefão. Então eu contei como foi a minha fuga desastrada do escritório da máfia, e enquanto o fazia, pensava em como foi que eu, policial infiltrado na bandidagem fui capaz de entregar o resultado do meu trabalho de mãos beijadas ao chefe de outra “máfia”, e quão patético me parecia voltar à estaca-zero no disfarce para obter os documentos. Eu teria de começar tudo de novo, até ter acesso novamente a um armário do alto-escalão deste outro empreendimento. Tudo de novo…
Então, o Chefão estendeu os braços, apoiando-se em meus ombros, e caminhou comigo até o corredor, dizendo:
– Muito bom, muito bravo! Está mesmo de parabéns, Novato. Agora, vamos discutir o seu futuro nesta organização…
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